segunda-feira, 1 de fevereiro de 2016

Capítulo IV Entrando nas trevas


Capítulo IV


Entrando nas trevas

Não vou negar que o medo e a ansiedade tomavam conta de mim. Eu estava num lugar desconhecido, no meio de lugar nenhum. Completamente nu, vendado, com minhas mãos amarradas às costas, uma das pernas atadas e as cordas que me atavam as mãos passando também pelo meu pescoço.
Uma música sem letra, de origem celta e já conhecida por mim, tocava ao fundo. Como estava vendado, tinha que confiar nos meus outros instintos para reconhecer o meio. O cheiro de velas e incenso de lótus era facilmente percebido. Pela venda, só conseguia divisar lampejos do tremular das velas e nada mais. Meus pés tateavam um solo arenoso, terroso e o frio tocava meu corpo com o sopro de um vento fraco.
Antigo Gravador usado aos 10 anos

Eu sabia que não estava só, mas no meu íntimo era como se estivesse. Apesar de conhecer Mariah (chamaremos assim minha iniciadora), de sermos parentes sanguíneos mesmo assim, me senti só. Afinal ali não éramos parentes, mas mestra e discípulo, professor e aluno.

Não fosse o fato de estar nu, amarrado, vendado e sem saber sequer onde estava que me incomodava, mas as dúvidas que surgiram exatamente no dia marcado para minha iniciação.
Naquele mesmo sábado, ainda pela manha, recebi o aviso através de um telefonema.

Mariah, em seu português carregado de sotaque me avisou logo pela manhã pelo telefone:

-Esteja pronto hoje à noite. Vou passar e te buscar. Hoje você vai nascer! – ela me disse

-Está bem, mas o que tenho que fazer? – perguntei meio contrariado.

A resposta foi o som do telefone sendo desligado, sem sequer um “até logo”.

Eu não compreendia as razões para a angustia que se instalava em meu peito. Afinal, mesmo sem conhecer muito bem do que se tratava a iniciação, e mesmo as responsabilidades que viriam com isso, era o que eu vinha desejando há quase seis meses, desde a chegada de Mariah ao Rio de Janeiro.
Mariah era uma jovem de 24 anos de idade na época. Tinha vindo ao Brasil de férias, para conhecer a parte da família distante.  Ela tinha o típico biótipo dos imigrantes antigos que se misturaram aos americanos. Pele muito branca, as formas delicadas, mas o corpo mais cheio do que estamos acostumados. Não era o que chamaríamos de gorda, mas de "cheinha". Cabelos nos ombros, com um tom de loiro que pendia quase ao ruivo. Sardas nas bochechas e olhos de um azul profundo, quase violeta. Ela era um tipo diferente. Nem bela, nem feia, mas exótica. Sempre trajando vestidos compridos, abaixo dos joelhos, com rendas e sempre de cores vivas. Joias de prata e uma lua crescente que pendia de seu pescoço, pendurada numa fina corrente, também de prata.

Nossas conversas eram muito agradáveis, ao menos as partes em que conseguia compreender. Apesar dos tantos anos de estudo do inglês, compreender as gírias locais como “what´s the craic?” (algo como “Tudo Bem”) ou o português cheio de erros e sotaque carregado, não fazia qualquer diferença.
Conversávamos a maior parte do tempo sobre as histórias de família, sobre a vida dela nos EUA e sobre o ocultismo. Imediatamente reconheci nela conhecimento e a contra parte também foi verdadeira. Em uma de nossas conversas ela me questionou sobre minha escolha religiosa, quando eu afirmei não possuir nenhuma.

Gerald Gardner simulando a evocação de um demônio
Graças aos meus estudos no ocultismo, o cristianismo era carta fora do meu baralho. Eu me identificava com idéias ligadas ao espiritismo de Allan Kardec. Reencarnação era um conceito facilmente aceito por mim. Mas também existiam pontos como “voltar para sofrer” que não aceitava. Então, não podia afirmar que tivesse uma religião nessa época, tinha muito mais conceitos religiosos, que mesclados criavam o meu contato com o Divino.

Nessa época, o segundo casamento de minha mãe não ia muito bem. Já tinha um irmão, fruto desse casamento que era onze anos mais jovem que eu, e de certa forma, tomei para mim a responsabilidade do trato com ele. Seu pai era médico e como tal, passava pouco tempo em casa. E para uma criança de seis anos, acabei me tornando a referência do masculino. Essa era uma das minhas preocupações também... a formação religiosa de meu irmão. Alguns meses depois, minha mãe viria a se separar e se mudar, ficando eu, aos dezoito anos de idade a morar sozinho, por decisão própria.

Maraiah me falava sobre a Wicca. Explicava-me como essa religião se ligava profundamente aos nossos ancestrais. Aos poucos comecei a ver como ela se encaixava perfeitamente com as minhas crenças nessa época. Fora esse fato, dessa nova religião apresentar tantos argumentos convincentes, ainda existia aquela coisa da rebeldia adolescente. Ser um Bruxo era algo extremamente diferente, especial. E eu não conhecia mais ninguém que tivesse essa oportunidade. Eu tinha que me tornar também um sacerdote.

Naquele sábado, meu desejo seria realizado, mas a angústia permanecia. Na época achei que se devia ao desconhecido, hoje percebo que era meu íntimo me alertando, minha essência divina gritando contra a violência que cometeria contra minha alma.

Conforme combinado, ao cair da noite, lá estava eu de pé, na portaria de meu prédio no alto de uma ladeira em Copacabana. Maraiah chegou de carro, até hoje não sei de quem era, ou como ela conseguiu aquele carro. Aliás, estava tão ansioso e angustiado que sequer me preocupei em perguntar. Assim que entrei no carro, ganhei de Maraiah uma venda para os olhos, e me foi avisado que não deveria retirar essa venda até que me fosse permitido.

Rodamos de carro por uns 30 minutos. Mesmo tentando descobrir onde estaríamos indo, não consegui fazer mentalmente o caminho depois da terceira esquina. Imaginei que estaríamos indo para a casa de um amigo de Mariah, um rapaz também americano, mas que vivia aqui no Brasil já há cinco anos, e que a conhecia antes de se mudar para o Brasil. Até hoje não sei se estava certo, pois durante todo tempo não a ouvi falar com ninguém mais, como também não ouvi qualquer outro som que denunciasse que em algum momento existiria alguém mais junto a nós.
O carro parou e a única coisa que sabia é que tínhamos subido, como se fosse uma pequena serra, ou uma subida grande, e que não ouvíamos o som de outros carros. Foi daí que veio a impressão de que estaríamos na casa do rapaz Americano, pois sabia que morava numa casa no Alto da Boa Vista.
Fui guiado pela minha iniciadora por um caminho em que em nenhum momento adentramos alguma estrutura, sempre andando ao ar livre. Paramos repentinamente e recebi a ordem para que me despisse completamente.

Inicialmente fui preenchido por um misto de vergonha, excitação e angustia, mas afinal, estar lá era uma decisão minha. Minha iniciadora era uma parente, uma pessoa com quem estava convivendo há quatro meses diariamente, sabia não ser nenhuma louca ou algo parecido, então relaxei um pouco. Quero dizer, relaxei mentalmente, porque fisicamente meus músculos pareciam rochas. Completamente retesados graças aquela excitação e mesmo a vergonha de estar me despindo.
Claro que inicialmente mantive minha roupa de baixo, quando escutei quase que imediatamente o comando:

-É para tirar TUDO! – Mariah gritou distante

Não tinha argumentos. Tinha mesmo que tirar.

O leitor pode se colocar nesse momento em meu lugar. Vendado, sem saber onde estava... se existiam outras pessoas presentes. Completamente nu, sentindo o chão de terra sob meus pés, escutando sons estranhos e aromas conhecidos e desconhecidos.

Senti Mariah se aproximar e imediatamente amarrar minhas mãos nas costas. Era uma amarração firme mas gentil, não para machucar, apesar de evitar que fosse possível soltar minhas mãos. Em seguida senti uma corda passando por meu joelho esquerdo e as pontas da corda que atavam minhas mãos, passando defronte a meu pescoço e sendo mais uma vez amarradas com as pontas descendo pelo meu peito nu.

Vagarosamente Mariah me puxava pelas pontas que pendiam de meu peito, como se fosse um cabo guia. O som da música ficava mais alto, e os aromas se misturavam e ficavam mais fortes. Nesse momento Mariah começou a proferir palavras estranhas na época, mas que depois se tornaram minhas companheiras por milhares de rituais:

- Eko, eko, Azarak
Eko, eko, Zomelak
Bazabi lacha bachabe
Lamac cahi achababe
Karrellyos
Lamac lamac Bachalyas
Cabahagy sabalyos
Baryolos
Lagoz atha cabyolas
Samahac atha famolas
Eko, eko, Cernunos
Eko, eko, Aradia

Hurrahya!

Todo um ritual tomou seu lugar. Palavras ditas em inglês. Perguntas a que ia respondendo como me indicado. Fui levado de um lado a outro, apresentado a quatro quadrantes que depois viria, a saber, serem os quatro elementos: Terra, Ar, Água e Fogo.

Tudo era amedrontador, mas excitante. Eu me sentia diferente, aquela angustia foi mascarada pela curiosidade, essa mesma curiosidade que após tantos anos no oculto, sei ser o chamariz e a armadilha que “capturam” tantos jovens.

Após ser chibateado simbolicamente (para purificação), senti Mariah novamente se aproximar lentamente e nesse momento a ponta de uma adaga tocou meu peito  exatamente na altura do coração. Fui informado que chegara a hora da “prova iniciática”, prova essa que faria toda a diferença entre meu ser antigo e o novo ser. Ali morreria o Fabiano e nasceria o bruxo, mesmo que não soubesse muito bem o que acontecia, eu tinha o conhecimento de que nada seria igual depois daquele dia.

Quero esclarecer ao leitor que não divulgarei a prova iniciática, ou do que se trata. Não por ser um segredo da bruxaria, mas simplesmente para não incentivar a leitores dessa obra a tentarem recriá-la. Todo o restante da cerimônia está sendo descrito exatamente como aconteceu.

Passei pela prova. Essa prova envolvia um psicodrama, onde juramentos foram proferidos, pactos aceitos e selados com um cálice, que foi instrumento de minha morte e meu renascimento. Ali eu coloquei dentro do meu “novo” ser a essência daqueles Deuses que num futuro perceberia não serem verdadeiramente Deuses.

Fui levantado, novamente apresentado aos quatro elementos, dessa vez com um novo nome e já como um bruxo. Minha venda foi então retirada, sob a alegação de que eu veria a “verdadeira luz” a partir dali. Percebi que estava num quintal de uma casa completamente murada.

Nesse momento me dei conta de que Mariah também estava completamente nua, o que me constrangeu mais do que o fato de eu estar despido. Já sem a corda que me atava e que posteriormente me foi presenteada, simbolizando minhas medidas, e a confiança de minha iniciadora depositava em mim, fui convidado a chegar até uma mesa que servia como altar. Nela se encontravam velas, um cálice, um caldeirão, um pentagrama (estrela de cinco pontas dentro de um círculo) e uma adaga, que posteriormente vim a conhecer pelo nome de Athame. Cada um dos instrumentos me foi apresentado e explicado.

Mariah me colocou no centro de um círculo, onde depois vim a descobrir ser a cerimonia completamente realizada em seu interior. Acompanhei-a num processo contrário ao que tinha escutado enquanto vendado e amarrado. Percebi que estavam sendo despedidas todas as energias que anteriormente tinham sido evocadas e que, aquele espaço mágico, os Deuses clamados também estavam sendo despedidos.

Recebi a ordem de novamente me vestir e assim o fiz me sentindo aliviado. Não que a nudez me tenha sido traumática algum dia, mas todo o misto daquelas emoções faziam com que a nudez fosse mais um mistério em toda aquela cerimônia. Também fui indicado a colocar novamente a venda. Só bem mais tarde, depois de minha terceira e derradeira iniciação na bruxaria soube que finalmente era confiável o bastante para saber o local em que as cerimônias eram realizadas e mesmo quem era seu proprietário.

Fomos embora e, até chegar novamente à portaria de meu prédio e retirar a venda, não falei sequer uma palavra. Minha mente girava entre as lembranças e sensações daquela noite estranha, mas excitante. Só no dia seguinte tive contato com Mariah, que me trouxe uma espécie de caderno idêntico a um que lhe pertencia, e que me foi entregue para copiar até certo ponto. Recebi as instruções de que deveria copiar exatamente as mesmas palavras, nas mesmas linhas e até mesmo no mesmo espaço, independente de minha caligrafia ser diferente da dela. Copiando e lendo o que escrevia, muito sobre a minha nova religião, minha nova responsabilidade e posição, assim como sobre minha iniciação foi finalmente compreendida.

Naquela noite tive sonhos muito estranhos, que mesclavam os acontecimentos da noite anterior com eventos desconexos, Deuses desconhecidos e rituais antigos.

Assim nasceu MillenniuM, que nos próximos anos ainda passaria por mais duas iniciações na bruxaria Wicca, vindo a se tornar um sumo-sacerdote da religião.

Foto da iniciação tradicional


Realizando Cerimônia como Sumo Sacerdote


Altar tradicional de Wicca


Gerald Gardner Pai da Wicca em seu Gabinete


Foto de época Av. Copacabana quase em frente à extinta Casa Mattos e o Curso de Inglês


A Biblioteca onde tudo começou


Em 2004 no meu antigo Estúdio de Magia


Antiga foto de ritual Wicca




9 comentários:

  1. A Mariah que foi sua iniciadora...
    Ela ainda está viva?
    Se estiver ...Ela se converteu ao cristianismo que nem o senhor?

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    1. Está viva sim e não...não se converteu e não tenho mais relação com ela que de certa forma, me renegou.

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  2. O livro ta sencacional, viajo em kd capitulo ��������
    Aguardando o proximo cap.

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  3. Muito forte sua história olha como DEUS e maravilhoso

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  4. Respostas
    1. O livro não será vendido. Resolvi publicar por aqui gratuitamente, para que possa alcançar mais almas

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